I
Sofia pagodeia lindamente na
pista até ter sua atenção ofuscada por outra garota. As duas disputam o espaço
apertado da roda de pagode que se formou na pista de dança e depois se abraçam.
Já do lado de fora, esgotadas,
elas caminham até o estacionamento do outro lado da rua.
– E como foi lá com o loiro?
– Maravilhoso! – Kátia vibra –
Pena que não demorou muito porque amanhã ele vai dar aula.
– Hum... Professor de quê?
– Artes marciais.
– Sumô?
– Não sei... Eu não perguntei
qual arte marcial era... Aff, só porque o cara é gordinho tem que ser professor
de sumô?
– Falando em luta, tem duas
pessoas se atracando naquele canto ali. – Acena com a cabeça disfarçadamente – Olhe
e disfarce enquanto eu dou ré na moto.
Kátia olha de relance para o
casal atracado que se desgruda rapidamente. As amigas já estão se preparando
para voltar para casa e Sofia só precisa dar partida na sua motoca. O casal do
muro aproxima-se das amigas: são, por coincidência (desastrosa), o ex-namorado
de Kátia, Popeye, e sua namorada atual, Laísa.
– Quer uma ajuda com a moto, Sofia?
– Popeye diz fazendo Sofia franzir as sobrancelhas.
– Ajuda pra quê?! Ela já está
ligada só esperando a Kátia montar...
– Sei lá, pensei que você
precisasse de alguma ajuda.
– Se você quer tanto me ajudar, eu
aceito dinheiro para gasolina.
– Oi, Sofia, oi, Kátia... O show
estava bombando, não? Eu vi vocês duas dançando como se o mundo fosse acabar. –
Diz Laísa sorrindo.
– A boate estava ótima mesmo! – Sofia.
– Oi, Laísa. – Kátia vira-se
para Sofia – Vamos, minha linda?
– A festa já deu mesmo o que
tinha que dar. Aquela luminosidade do globo estava causando muito calor então Popeye
e eu resolvemos sair para tomar um ar. – Justificando-se – A gente também já
está de saída, não é, meu amor? – Vira-se para Popeye.
– Exatamente! – Popeye –
Kátia, você vai participar do concurso de rap que anunciaram no show?
– Claro!
– Eu pensei que sua mãe te
proibisse de ser rapper.
– Minha mãe não me proíbe de
nada. Ela apenas não gosta que eu faça rap. E com o prêmio de dois mil reais
até ela viraria compositora.
– Pois saiba que você vai ter que
duelar comigo? Nós dois na final, hein?
– Vamos ver o que vai dar...
Vamos, Sofia?
– Já podemos ir? – Sofia –
Aleluia!
As amigas partem comunidade a
fora, ou melhor, comunidade a dentro. A comunidade em questão é o Morro da Água
Morna onde todos eles moram.
Já de manhã, Popeye e seu irmão
mais novo, Alisson, conversam na cozinha de casa enquanto o primeiro mexe
ininterruptamente uma panela no fogão.
– Não gosto de funk. – Alisson.
– A segunda parte do show foi um pagodinho.
Só faltou o rap mesmo.
– É... Alguns pagodes são
razoáveis. Samba é melhor.
– Sabe o que é mais legal? Sair
pra se divertir! Você tem que sair e pegar mulher. Geral tá comentado aí no
morro que você é viado.
– E eu lá ligo para o que geral
ou parcial fala? – Dá de ombros.
– Tanta mulher gostosa, mano...
Tinha mulher do Centro, da Baixada, até da Orla pintou mulher! Eu tentava não
olhar para os lados. Andava como se tivesse com torcicolo. A Laísa também não
desgrudou de mim um só minuto. – Desgostoso.
– Todo dia depois de
uma festa você me diz que não se divertiu porque tinha um monte de mulher
gostosa do seu lado e a Laísa não saía do seu rastro. Você já se tocou disso?
– E com que é que eu vou
desabafar os meus problemas? – Brinca – Você é meu psicólogo.
– Eu pensei que você iria parar
de reclamar quando começou a namorar Laísa porque com Kátia era a mesma coisa.
– E desde quando falar de mulher
bonita é reclamar da vida?
– Desde quando você deveria ser
solteiro para sair traçando essas mulheres todas.
Popeye se cala, mas não deixa de
mexer a panela. Pensa em falar, mas recua. Reflete e aí sim fala:
– Você vai entender o que eu to
passando quando encontrar a mulher da sua vida.
– Você já encontrou a mulher da
sua vida?
– Hoje eu sei que sim... A Kátia
também se inscreveu no concurso de raps, sabia?
– Concurso de raps! Quando vai ser?
Galega e Bernardo adentram a casa
com sacola nas mãos.
– O povo não fala em outra coisa...
No concurso de raps e no prêmio. – Bernardo.
– Esse prêmio chegou na hora certa.
Vai dar para pagar o curso de Mecânica que eu quero tomar. – Popeye.
Galega e Bernardo são pais
biológicos de Alisson. Popeye é filho de um romance de Galega com um fora da
lei, ladrão de cargas, que morreu pouco depois do filho nascer. Quando Galega
se mudou com Popeye para o Morro da Água Morna, Bernardo já era casado, mas se
separou para ficar com ela.
– Pode deixar, filho, que eu mexo
agora. – Galega toma a colher de pau da mão de Popeye – Fui comprar
cheiro-verde para colocar no ensopado. Hoje, em pleno domingo, o cheiro-verde
acabou porque eu não comprei a quantidade certa na segunda.
– Ainda bem que você me encontrou
lá na mercearia porque assim a gente comprou mais coisas além de tempero. –
Bernardo desarruma as sacolas.
– Pois é! – Galega pica o
cheiro-verde concentradamente.
– A Kátia também vai participar
deste concurso de raps.
– Então você já sabe, Bernardo? –
Popeye.
– Ela e aquela amiga dela
acabaram de colocar uma faixa lá em baixo pedindo o apoio da comunidade.
– O quê?! A Kátia e a Sofia
colocaram uma faixa lá em baixo pedindo o apoio da comunidade? – Popeye.
– Foi o que eu disse. – Bernardo
– Elas estão em frente à Mercearia, dê uma passada lá.
– Vamos lá, Alisson!
– Vamos, Popeye.
Popeye e Alisson descem um lance
de escada, depois mais um e mais um e em poucos minutos chegam à mercearia onde
também foi amarrada uma das pontas da faixa. Kátia e Sofia estão conversando
com algumas pessoas quando Popeye e Alisson chegam de supetão.
–“Prestigiem o show da Mc Kátia
no Concurso de raps do dia 22. Mc Kátia: o terror das patricinhas”. – Popeye
lê a faixa em voz alta – Mas o que significa isso, Kátia?
Kátia e Sofia se despedem das
pessoas com quem conversavam e se aproximam dos irmãos.
– O que é que tem de
incompreensível na minha faixa? – Kátia.
– O jogo baixo, minha querida.
Você resolveu apelar agora? Tá querendo induzir o povo a torcer por você?
– Não há nada de mais em convidar
mais pessoas para assistir ao concurso. Quanto maior o público, melhor. Assim
não haverá dúvida na decisão da vencedora ou vencedor.
Enquanto Kátia e Popeye discutem,
Sofia e Alisson se entreolham, ou melhor, Alisson tenta desviar o seu olhar. Sofia
não aceita o fato de Alisson nunca ter chamado-a para pelo menos conversar
enquanto ele se entristece por ser tão tímido ao ponto de ficar nervosíssimo
quando está diante de uma garota que o interessa.
– Alisson, chega aqui. – Sofia o
chama.
Sofia caminha com Alisson até um
canto reservado.
– Eu tinha que nos afastar
daqueles dois enquanto eles ainda discutem. – Sofia.
– Pelo visto o prêmio do concurso
virou a cabeça deles.
– Por que você não foi para o show
ontem, cara? Foi tão bom.
– Eu não gosto dos ritmos
musicais que tocaram por lá.
As mãos de Alisson suam. Kátia e Popeye
do outro lado da rua travam um bate-boca equilibrado.
– Você curte que tipo de música
mesmo? Pop? Rock? – Sofia.
– Eu curto MPB e Bossa Nossa Nova
também.
Sofia torce a boca de leve e
Alisson continua encabulado.
– Acho melhor interrompermos
aquela discussão antes que a coisa fique séria. – Alisson.
Alisson dirige-se a Popeye e
Kátia. Sofia pensa em chamá-lo de volta, mas acaba desistindo.
– Se você quer trapacear, Kátia,
eu vou devolver na mesma moeda. – Popeye.
– Trapacear? E repita de novo,
cavalheiro... Você me fez uma ameaça?
– Eu já disse tudo! Fui!
Popeye sobe as escadas de volta
pra casa. Depois de se despedir de Sofia com um aperto de mão, Alisson
despede-se da sua irmã:
– Boa sorte no concurso, Kátia. –
Aperta mão dela.
– Obrigada, meu irmão. Nada de
inventar uma desculpa para não prestigiar a Mc Kátia no sábado, ok?
Os irmãos se despedem e Alisson
sobe as escadas também.
– A notícia já chegou ao meu
ouvido... Estava rolando um fuzuê por aqui? – Diz Jane, a mãe de Kátia, saindo
da mercearia com sacolas nas mãos.
Jane e Bernardo, os pais de
Kátia, eram casados até Bernardo se interessar por Galega, há alguns anos.
Bernardo ajudou Galega a criar Popeye e teve com ela Alisson que é meio-irmão
tanto de Kátia quanto de Popeye.
– Então quer dizer que aquele
franguinho tentou te intimidar? Olhe, minha filha, eu não faço gosto que você
seja rapper, mas se for pra derrotar Popeye, eu te dou o maior apoio.
– Intimidar coisa nenhuma! –
Abraça a mãe – Eu sou o terror das patricinhas e do Popeye também.
– É por isso que eu digo e repito
para você também, ouviu, Sofia? Estudem, trabalhem e sejam independentes. Homem
nenhum vale a cueca que usa.
– Ele estava no maior amasso com
a namorada ontem na festa, mãe. Escorados no muro do estacionamento.
– Aquela chulada... Nem bunda
tem. – Jane olha seu relógio de pulso – Deixe-me cuidar da vida que já vai dar
meio-dia. O que é que você tem, Sofia?
Por que você está tão tristinha assim?
– Nada, Dª Jane. Eu estava aqui
pensando na morte do bezerro.
– Hum... Sei bem que bezerro é
esse. – Kátia insinua e passa o braço em volta do pescoço de Sofia.
– Me contem! Eu quero saber
também! – Diz Jane já caminhando.
– Nada, Dª Jane. Isso é invenção
da Kátia.
Quem vai levar o prêmio do concurso? O próximo capítulo será de hoje à quinze.
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