II
Outra semana se inicia na
prática, pois é uma segunda-feira. Kátia e Sofia estão descendo o morro para ir
à faculdade dividindo um fone de ouvido conectado a um Ipod. Elas passam pela
mercearia onde Jane tem crediário. Kátia fica boquiaberta com um fato que
também deixa Sofia surpresa.
– Que desastre, mana! A faixa que
nós fizemos está toda manchada! Mas o que será que aconteceu? Choveu ontem à
noite?
– Não. Se tivesse chovido, a rua
estaria molhada também. E você esqueceu que nós usamos tinta e rímel à prova
d’água? – Sofia.
– É claro que não esqueci. Mas a
faixa está toda borrada! Parece até que foi alvo do jato de uma mangueira. –
Deduz.
– Só se for a mangueira dos
bombeiros porque aquele rímel me custou uma fortuna. – Agacha-se e pega algo no
chão – A faixa foi alvo mesmo de uma ideia engenhosa.
Sofia caminha com um pedaço de
bexiga na mão e pede que Kátia cheire-o.
– Que cheiro é esse? Vinagre?! –
Conclui.
– Exatamente.
– Eu não posso acreditar... Você
está pensando no que eu estou pensando, Sofia? Aquele sacana do Popeye resolveu
jogar sujo.
– O pior de tudo é que ele não limpou
o local do crime, pois não se deu ao trabalho de jogar no lixo as bexigas
estouradas que ficaram no chão. Amador!
– Pois eu conto com você pra me
ajudar a pensar no contra-ataque. Se ele
pensa que vai aprontar comigo e não vai ter o troco, está muito enganado.
– Tô com você e não largo. Mas
agora vamos adiantar o passo se não o Prof. Pedrosa não vai nos deixar entrar
na sala de aula.
– Vamos. – Voltam a caminhar – Então quer
dizer o Popeye resolveu utilizar um golpe baixo? Isso pra mim só quer dizer uma
coisa: ele está morrendo de medo de me enfrentar no sábado. – Sorri com um ar
vitorioso.
Horas mais tarde, pouco depois do
almoço, Popeye está na concessionária de motos em que trabalha com Bernardo. Popeye
tem uma difícil tarefa: ter o aval do seu pai de criação para participar do
concurso. A situação é: enquanto Mc Kátia é conhecida como o “terror das
patricinhas” por cantar versos que criticam a futilidade, Mc Popeye canta
versos românticos e é conhecido como “o Don Juan”. Mas o rapper queria mesmo é
cantar músicas eróticas que ele julga que fariam mais sucesso.
Kátia e Sofia observam à
concessionária quase vazia do outro lado da rua. Popeye e Bernardo, por sua
vez, conversam numa mesa dentro do estabelecimento.
– Você tem certeza que o seu pai
veta todos os raps do Popeye com uma pegada mais sexual?
– Tenho sim. O meu pai é um
religioso devotado. Antigamente ele dava até nota no caderninho das pornografias
que o Popeye costuma escrever. E o ‘Don Juan’ observava tudo calado.
– O Mc Popeye obedece mesmo ao
pai e ex-sogro.
– Obedece e respeita piamente. –
Assente com a cabeça – É só o meu pai dizer não que o Popeye consente. –
Analisa o perímetro – Você já está pronta para executar a sua parte do plano?
– Prontíssima. Eu só não consigo
crer que o Popeye deixe o seu caderno de composições no local de trabalho.
– Creia em mim! Popeye escreve
suas abobrinhas entre uma folga ou outra e guarda seu caderninho na segunda
gaveta da sua mesa. – Convicta.
Sofia, com os olhos arregalados,
encara a amiga.
– Por que tá me olhando assim?
Isso são lembranças do tempo em que namorávamos. Agora eu já vou.
Kátia olha para os lados,
atravessa a rua e entra na concessionária. Popeye, que está sentado na mesa,
levanta-se e vai até a entrada da loja recebê-la...
***
Enquanto Kátia e Sofia
confabulavam do lado de fora da concessionária, Bernardo e Popeye também
conversavam:
– Olha elas conversando ali,
Bernardo. – Aponta com os olhos.
– Aonde que eu não to vendo?
– Tá vendo aquela moto vermelha
na calçada? Elas estão em pé ao lado da moto.
– Agora eu as vi! Kátia deve ter
vindo me visitar.
– Eu posso então declamar a letra
que eu to compondo para o concurso?
– Manda a ver, Gabriel.
– “Vejo fissuras na parede
Fissuras
na parede
Natural
do ser humano é o erro
E
pode haver conserto
Como
a história de um homem que precisou por céus passear
Pra
perceber que o paraíso existe em um só lugar
Quero
deitar na rede
Você
é a minha sede
E
como você não percebe
Que
só há fissuras na parede?
Eu
quero para nossa casa ainda de pé
Te
ver voltar, mulher, o amor...
Compartilhar!"
Popeye pausa a cantoria quando
percebe que Kátia olha para os lados, atravessa a rua e adentra a
concessionária. Ele levanta-se da mesa em que está sentado e vai até a entrada
da loja recebê-la.
– Oi... Ga-bri-el. – Kátia
soletra olhando para o crachá de Popeye.
– Bom dia, Kátia. Bem-vinda à Animals Moto.
– A Sofia está te esperando lá do
outro lado. A moto dela está com um probleminha.
– Que probleminha?
– Um probleminha na corrente ou é
correia, sei lá! Você sabe que eu não entendo nada de moto.
– Eu vou lá ver.
Popeye sai da concessionária ao
mesmo tempo em que Kátia aproxima-se do seu pai.
– Pai, que bom te ver! – De
braços abertos.
– Minha filha abençoada! Como vai
você? – Abraçando-a.
– Vou ótima e você?
– Vou bem graças a Deus.
– Eu estava pensando, caso eu
ganhar o prêmio do concurso, em comprar um fogão e uma geladeira novos na loja
do Diogo. Tem promoções filés lá.
– Nada disso. Caso você ganhe, a
gente vai comprar no Centro que é mais barato e eu mesmo trago na caminhonete
da concessionária. – Kátia sorri.
– Pai, você pode pegar um copo
d’água para mim?
– Claro!
Bernardo dá as costas, Kátia
avalia o ambiente, caminha até a mesa de Popeye, tenta abrir a segunda gaveta e
percebe que ela está trancada. Bernardo volta com a água da filha que corre de
volta para a mesa do pai.
– Obrigada! Hum... Essas mesas
daqui são todas iguais. Não corre o risco de um funcionário abrir a gaveta do
outro?
– As fechaduras dessas mesas
parecem até que são paraguaias. Eu perdi minha chave e abro minha gaveta com
uma chave de fenda.
– Entendi... – Entorna o copo com
água de uma só vez – Você pode pegar mais água para mim?
– Só um instante, filha.
Kátia pega uma tesoura, força e
consegue abrir a gaveta de Popeye. Ela pega o caderno do ex-namorado e coloca
num canto sobre a mesa do pai assim como a tesoura. Bernardo volta e entrega o
copo d’água a filha.
– Esse daqui é da Sofia. – Com o
copo em mãos – Estou de saída, meu pai. Beijo no coração.
– Já vai, minha filha? Tudo bem.
Até logo.
Kátia dá um leve abraço em
Bernardo e encontra Popeye na entrada da concessionária.
–Tchau, Kátia.
–Tchau, Gabriel. – Diz Kátia sem
parar de caminhar.
Popeye percebe que Bernardo está
entretido lendo algo. Ele chega mais perto e percebe que o algo em questão é o
seu caderno de raps eróticos.
– Gabriel, meu filho! – Bernardo
exclama – É assim que você quer me convencer a te deixar participar deste
concurso? Hein?!
À noite, na academia, Alisson e Popeye
malham. Popeye concentra-se nos exercícios para os membros inferiores já que
ganhou seu apelido de marinheiro graças ao fato de ficado com o tronco e os
braços mais protuberantes que suas pernas.
– E aí ele falou dos planos de
Deus pra mim... E depois falou de Jesus... E de pecados. Até o inferno, o
Bernardo citou – Diz com a mão na testa.
– O pai pegou pesado no sermão
dessa vez – Alisson ri – Ele não vai te proibir participar do concurso, vai?
– Ele não vai me proibir não, mas
antes eu vou ter que escrever um rap cristão... – Sorri – Mas o coroa vai se impressionar
comigo. Eu vou mandar um rap religioso que ele vai adorar. – Sorri – A Kátia
também vai adorar a próxima que eu vou aprontar. Não é guerra que ela quer?
– Você e a Kátia estão indo longe
demais.
– Olha quem fala... Quem foi que
me deu a ideia do vinagre?
– Não me inclua nessa. Você só me
perguntou como faria para dissolver aquela tinta à prova d’água e eu, de bobo,
respondi.
– Se não fosse você, eu estaria
jogando balões com água naquela faixa até agora.
– Mané!
– A Kátia não perde por esperar. Inclusive
ela estava com um tênis show de bola hoje. Em termos de corpo, eu considero a
Kátia a mais suculenta do Morro da Água Morna.
– A Kátia isso, a Kátia aquilo, a
Kátia aquilo outro. Você não para de falar dela um só instante.
– Estou parecendo um disco
arranhado, não é? Amigão, quem vê de fora diria que eu ainda sinto alguma coisa
por ela?
– Concentre-se nos exercícios que
a Laísa vem vindo. – Sussurra.
Alisson e Popeye voltam a malhar
e Laísa se põe na frente deles.
– Amados! – Laísa exclama – Eu
demorei para sair de casa porque o frio
hoje está muito... Ai, esqueci a palavra.
– Forte? – Popeye.
– Não. É uma palavra que eu
aprendi hoje no livro – Estalando os dedos.
– Severo? – Alisson palpita.
– Incongruente! O frio hoje está
muito incongruente.
O próximo capítulo será de hoje à quinze!
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